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SOCIEDADE E POLÍTICA NO BRASIL

 

 

 

Seria difícil pensar em um tema tão abrangente quanto este, o da "Economia, Sociedade e Política no Brasil". Para não me perder completamente, creio que devo entendê-lo como uma proposta de examinar, em termos bastante amplos, como se dão as relações entre estas três esferas da atividade humana em nosso país, e, mais particularmente, na conjuntura especial que estamos vivendo. Ainda assim o tema é amplíssimo, mas, pelo menos, já é possível começar a delineá-lo.

Creio que o ponto de partida deve ser o de contrastar a visão tradicional das ciências sociais a respeito do relacionamento entre economia, sociedade e política, e a visão que temos hoje destas questões.

A visão clássica das ciências sociais e sua limitação

A visão clássica das ciências sociais era a de que a sociedade se organizava, basicamente, para a produção e a apropriação de bens, e daí decorria tanto as diferentes formas de organização social quanto as diferentes formas de organização do Estado. A sociedade, entendida como a trama de relacionamento entre grupos sociais - classes, regiões, grupos lingüísticos, culturais, étnicos - deveria sempre ser entendida em função do jogo de interesses econômicos que tinha por detrás. A política, expressa através da disputa partidária, e materializada no controle do Estado, era a expressão do conflito de interesses econômicos, e da dominação de uma classe social sobre as demais.

No seu tempo, este entendimento das relações entre economia, sociedade e política foi revolucionário, na medida em que propunha uma inversão total da visão tradicional de encarar a organização da sociedades humanas, que punha ênfase seja no seu ordenamento jurídico, seja em seus valores religiosos e morais, seja nas qualidades pessoais de seus líderes. Esta visão revolucionária não ficou restrita aos políticos ou intelectuais da tradição marxista, para os quais todos os fenômenos sociais e políticos devem ser, em última análise, referidos à esfera do econômico; ela também domina, e talvez de forma até mesmo mais radical, entre os economistas da tradição liberal, ou clássica, que buscam utilizar a lógica do cálculo do interesse econômico para todas as esferas da atividade humana.

Basta olharmos para a realidade do Brasil de hoje, no entanto, para verificarmos quão insuficiente é esta visão economicista da realidade em que vivemos. Seria insano menosprezar a gravidade dos problemas econômicos pelos quais passamos - as dívidas externa e interna, os baixos níveis de investimento, a especulação financeira, o desemprego, a pobreza absoluta de grande parte da população - e as restrições e os condicionantes que eles colocam sobre o futuro que nos espera. O que eu quero enfatizar é que a lógica econômica não basta para entender como chegamos à situação em que nos encontramos, e não acredito que será suficiente para nos ajudar a sair dela.

A visão contemporânea.

Hoje sabemos que a sociedade e a política não são fenômenos redutíveis ao econômico, mas que têm sua dinâmicas próprias, que devem ser entendidas e estudadas nelas mesmas, e não em função de outras realidades; mais ainda, sabemos que é no entendimento da interação entre estas esferas que está a chave para o entendimento mais adequado de nossa realidade. Sabemos, ainda que a interação entre economia, sociedade e política não se dá no vazio, mas a partir de uma realidade historicamente densa de instituições, experiências, relações, valores, hábitos e expectativas.

Interação entre Sociedade e Economia.

Em uma sociedade onde o único que predominasse fosse o mercado, as divisões sociais seriam coextensivas com a divisão social do trabalho - patrões e empregados, burgueses e proletários. No Brasil, no entanto - como, em graus diferentes, em todas partes - a sociedade se estrutura tanto em função da organização econômica quanto em função de outros fatores - as origens étnicas e culturais, a localização geográfica, as divisões e solidariedades lingüísticas e religiosas. As próprias relações de classe, aquelas referidas mais diretamente à divisão do trabalho econômico e à distribuição da renda, são influenciadas e condicionadas pelo sistema político - se, por exemplo, o Estado intervém ou não na regulação das relações de trabalho, se o acesso a empregos e a rendas pode ser obtido pela via política e institucional, e assim por diante. O que caracteriza a sociedade brasileira, talvez mais do que muitas outras, é a ausência de uma sociedade efetivamente organizada em termos de classe, ou seja, de relações de mercado, e a impregnação de todas as interações sociais pela presença do Estado, da política e, eventualmente, de outras instituições.


Interação entre política e economia.

Raciocínio similar pode ser feito em relação à interação entre política e economia. uma visão histórica adequada das interações entre a política e a economia no Brasil deve ser suficiente para afastar duas nações igualmente parciais e simplistas: a primeira, tradicionalmente formulada à esquerda do espectro ideológico, é a de que o Estado brasileiro é, sempre, o grande agente dos interesses econômicos mais poderosos, que consegue inclusive manipular os processos eleitorais em seu proveito. A segunda, ouvida cada vez com mais freqüência em ambientes mais conservadores, é que o Estado e a política são os grandes responsáveis pela situação em que nos encontramos, pela sua irracionalidade, pelos seus gastos excessivos, pela sua indecisão, e pela facilidade com que é capturado pelos grupos de interesse mais organizados.

O fato de a política não poder ser entendida de forma plena pela lógica dos interesses econômicos não significa que o jogo político seja angelical e desinteressado. A verdade é que o Estado brasileiro, pelo poder de distribuir e atribuir autoridade, e pela capacidade de extrair e distribuir recursos de que dispõe, sempre foi cobiçado e buscado por aqueles cujas ambições de poder, prestígio e riqueza não podiam ser atendidos pela atividade econômica e empresarial enquanto tal. Ganhar uma eleição requer uma capacidade empresarial distinta da que vigora no ambiente da indústria e do comércio. Os benefícios advindos do cargo político incluem o prestígio e a honra, a possibilidade de atender os interesses econômicos e sociais dos eleitores, a capacidade de distribuir empregos e cargos, e vão até à participação em negócios que se dão através do Estado, na contratação de serviços, na concessão de licenças, na obtenção de privilégios. Grande parte destes benefícios são econômicos, no sentido de que eles implicam no acesso e na aquisição de bens e de riqueza; mas não derivam da atividade econômica enquanto atividade produtiva, e sim das posições ocupadas na máquina do Estado.

Não seria correto pensar, pelo dito acima, que a atividade política no Brasil é simplesmente parasítica em relação à atividade econômica. Pela sua capacidade de mobilizar interesses e reunir recursos, pelo poder de coletar impostos e investir, pelas iniciativas que muitas vezes assume, o Estado é freqüentemente o grande promotor de empreendimentos econômicos rentáveis, seja diretamente, pelas empresas estatais que cria, seja através do espaço que abre para grupos privados que encontram, graças à iniciativa do Estado, condições de crescer e de prosperar. É o Estado ainda a única instituição que consegue, efetivamente, redistribuir de algum modo a riqueza dentro da sociedade, tanto de forma condenável - pela sustentação de elites parasíticas que só conseguem se manter às custas do repasse de recursos públicos - quanto de forma moralmente mais legítima, através da educação, da previdência social, e dos empreendimentos urbanos e da política social.

Uma conseqüência deste papel freqüentemente dinâmico e empreendedor que o Estado Brasileiro tantas vezes assumiu foi que o empresariado brasileiro sempre viveu, em boa parte, à sombra do Estado, para facilitar e financiar suas operações, comprar seus produtos, garantir seus preços, controlar as demandas salariais dos empregados. Esta relação tem sido descrita como uma forma de "neo-mercantilismo", que tem como conseqüência uma elite empresarial politicamente debilitada e desacostumada a pensar em termos de eficiência e racionalização no uso de recursos e na escolha de produtos e fatores de produção dentro de uma situação de mercado.

As críticas que hoje se avolumam em relação ao Estado Brasileiro, assim como em relação à própria natureza do processo político e eleitoral, retomados com ímpeto, com todos os seus defeitos e qualidades, com a Nova República, tendem a deixar de lado estas dimensões positivas, e na realidade indispensáveis, do Estado moderno. Pelo tom das críticas, pareceria que nosso principal problema é o do excesso de Estado, excesso de governo, e que estaríamos no melhor dos mundos se o Estado e os políticos, amanhã, desaparecessem.

A ineficiência, o desperdício, o descontrole, a indecisão, a mesquinharia dos interesses menores que se sobrepõem aos interesses gerais, são demasiado óbvias no quadro político brasileiro para serem negadas, ou tratadas como problemas menores e sem importância. A crise atual do Estado brasileiro, no entanto, não deriva da existência destes fenômenos, que sempre estiveram presentes, mas sim o de sua progressiva incapacidade de atender de forma minimamente satisfatória às demandas que lhe são feitas, ou aos interesses dos grupos que dele participam ou a eles se associam. O Estado brasileiro apresenta hoje um quadro de ingovernabilidade que é tanto mais grave quanto se choca com a urgência cada vez mais premente de decisões que implicam contrariar interesses estabelecidos e pressões de curto prazo, e de eventual impacto político-eleitoral.

Os anos de regime militar serviram para mostrar que a ingovernabilidade afeta com freqüência os regimes fortes, fechados e imunes aos controles da imprensa, da opinião pública e dos partidos políticos. O que a democratização mostra é que ela não basta para que a governabilidade seja instaurada. A experiência dos poucos anos da Nova República já mostra como algumas decisões e ações são certamente mais fáceis do que outras. Decisões grandiosas e de grande impacto, quando possíveis, são sempre as preferidas. Políticas setoriais e de longo prazo, no outro extremo, são quase impossíveis, pela paralisação provocada pelo trabalho continuado de interesses contrariados (reforma agrária, eliminação dos subsídios agrícolas, reforma administrativa). Ações aparentemente "técnicas", de pouca visibilidade pública, são em princípio mais fáceis de serem conduzidas. Mas, freqüentemente, seu caráter técnico significa também que estas ações se subtraem facilmente ao controle político, e são suscetíveis à influência de grupos de interesse especializados (decisões sobre mercado financeiro, políticas de exportação, subsídios, política nuclear, incentivos fiscais, etc.)

O desenvolvimento de graus mais altos de governabilidade em um contexto de legitimidade política depende, tanto quanto a construção de uma ordem democrática estável, da constituição de uma série de instituições estáveis e auto-referidas que intermedeiem entre, por um lado, a opinião pública amorfa e manipulável e os interesses privados e setoriais capazes de mobilizá-la, e, por outro, o Estado. Estas instituições são necessárias não somente do lado da "sociedade civil", como os partidos políticos, os meios de comunicação de massas, as associações profissionais e sindicais, os grupos de interesse organizado, etc., como também do lado do Estado, através da constituição de um funcionalismo público motivado e cioso de suas responsabilidades, de um judiciário zeloso de sua competência e independência, e assim por diante.

É de se esperar que estas novas formas de institucionalização surjam e se desenvolvam não pela simples boa intenção de algumas pessoas, mas pela própria lógica de interesses dos grupos envolvidos, na medida em que eles comecem a sentir a precariedade de sua dependência exclusiva dos favores e privilégios de um Estado neo-patrimonial em crise. O resultado final deste processo, se ele for bem sucedido, não será, possivelmente, um Estado controlado pela "sociedade civil", mas uma situação em que instituições públicas solidamente constituídas possam colocar freios e contrapesos efetivos tanto à volatilidade da opinião pública quanto ao abuso de poder do Estado e dos interesses privados. A opinião pública, os grupos de interesse e o poder político do Estado serão também essenciais, neste contexto ideal, para manter sempre em cheque as tendências paralisadoras e conservadoras de qualquer sistema social que se institucionaliza. Nestas condições, as fronteiras usuais entre "público", "privado", "Estado" e "sociedade" estarão profundamente alterados, assim como os conceitos que hoje utilizamos para seu entendimento.

Conclusão

Vislumbrar a possibilidade de um encaminhamento adequado para os problemas políticos e institucionais do país não é o mesmo que afirmar que este caminho será seguido, e nem mesmo que ele é o mais provável. Se este caminho vier a ser efetivamente trilhado, existem uma série de questões e dilemas a serem enfrentados, dois dos quais merecem uma atenção especial.

Uma questão que se coloca com intensidade é a dos mecanismos de inclusão ou exclusão dos setores hoje marginalizados do "Brasil moderno" em relação à sociedade futura que se pretende construir. Esta questão é por vezes colocada em termos de uma oposição entre um modelo de desenvolvimento internacionalizado, baseado no fluxo relativamente aberto de idéias, pessoas e mercadorias do Brasil com o resto do mundo, e um modelo mais autárquico, fechado e, presumivelmente, mais autêntico e nacional. O que dá argumentos à segunda posição é a constatação de que o desenvolvimento do "Brasil moderno" tem se caracterizado pela exclusão de grandes setores da população, afetando particularmente as regiões nordestinas, o interior e a população de cor. No seu extremo, esta posição vem acompanhada de um rechaço generalizado à civilização ocidental e seus valores de eficiência, racionalidade, e individualidade, e sua substituição por valores supostamente mais autênticos de identidade étnica e cultural, afetividade, e coletividade. Não falta, nesta perspectiva, os que sustentam que o Brasil possui os elementos de uma civilização superior à do racionalismo e materialismo ocidentais, que estaria tão somente mascarada pelas manipulações das classes dominantes e seus aliados internacionais.

Quem conhece algo da história do Brasil sabe, no entanto, que não possuímos no passado um modelo de civilização próprio e mais autêntico para o qual possamos aspirar a retornar. Desde sua criação este país tem sido um complemento - e, freqüentemente, uma imagem retorcida - dos impérios coloniais e dos centros mundiais cujas influências culturais e interesses econômicos até aqui chegaram. A busca de um passado idealizado, apesar de provavelmente irrealista e ilusória em todos os casos, pode fazer algum sentido em países com uma história distinta, e uma cultura não ocidental identificável. Isto não significa, evidentemente, que não existam especificidades culturais próprias do país que não tenham valor e não possam florescer. Mas esta especificidade, para florescer e adquirir valor universal, há de residir nas maneiras próprias que os brasileiros construirão para se inserir no mundo moderno, e não no retorno nostálgico a formas culturais de um passado que não chegou a existir.

Assinalar o beco sem saída do nacionalismo cultural não significa ignorar a gravidade dos problemas de incorporação assinalados acima. O que é importante frisar em relação a esta discussão sobre a cultura brasileira é menos a solidez das teses nacionalistas e isolacionistas - que é quase inexistente - do que seu potencial de criação de formas explosivas de nacionalismo populista, em um contexto de altos níveis de exclusão social causados por uma internacionalização da cultura e da economia caracterizada pelo uso de tecnologias complexas e em qualificações educacionais cada vez mais elevadas.

Esta discussão traz à tona uma questão que permaneceu latente até aqui, que é a da dependência do Brasil em relação aos centros do capitalismo internacional contemporâneo. As chamadas "teorias da dependência", que existem de muitas formas, partem de um fato importante e conhecido - que países como o Brasil se constituíram, desde suas origens, como dependências de outros centros - para chegar muitas vezes a duas conclusões pelo menos paradoxais. A primeira é a de que o peso da dependência é tal que nada pode ser entendido em um país como o nosso a não ser a partir de sua inserção ao contexto externo. Em sua forma mais extremada, a teoria da dependência assume feição claramente paranóica: países como o Brasil são uma tragédia só, e tudo isto por culpa única e exclusiva "deles". A realidade, no entanto, é que a dependência não exclui o fato de existir uma realidade própria, específica e interna ao país, que não se esgota nem se exaure nas relações com os centros capitalistas mais desenvolvidos. A outra conclusão paradoxal, que decorre da primeira, é a de que todos os problemas poderiam ser resolvidos pela superação das relações de dependência. Mas se, de fato, a dependência é tão constitutiva, fica difícil imaginar de onde o país encontrará forças e recursos para superá-la. Se, ao contrário, entendermos que a realidade de um país com a complexidade do Brasil não se esgota nas suas relações externas, isto nos dá condições de pensar nas coisas que podemos fazer com nossos recursos, ter uma visão menos persecutória do mundo que nos cerca e, a partir daí, ter elementos para buscar reverter as situações de dependência que nos pareçam inadequadas.

A conclusão geral de tudo o que foi dito até aqui é que o autoritarismo brasileiro, cujas bases se erguem a partir da própria formação inicial do Brasil como colônia portuguesa, e que evolui a se transforma ao longo de nossa história, não constitui um traço congênito e insuperável de nossa nacionalidade, mas é certamente um condicionante poderoso em relação a nosso presente e futuro como país. A complexidade das questões envolvidas nesta discussão deve ser suficiente para deixar claro que, na realidade, o termo "autoritarismo" é pouco mais do que uma expressão de conveniência que utilizamos para nos referir a uma história cheia de contradições e contra-exemplos, onde, no entanto, um certo padrão parece predominar: o de um Estado hipertrofiado, burocratizado e ineficiente, ligado simbioticamente a uma sociedade debilitada, dependente, e alienada. E' da superação deste padrão histórico e suas conseqüências que depende nosso futuro. E como o passado é contraditório e o futuro aberto e pronto para ser construído, é possível ser otimista.

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